Behar, P.R.P. A escolha do antibiótico: critérios e avanços. p. 225 a 233. Capítulo 28. In: Brandão, A.M. Medicina Interna Atual. Revinter. 1998. Rio de Janeiro. 302 p. ISBN 85-7309-200-9
Princípios
A antibioticoterapia, assim como todas as intervenções médicas, é plenamente permeada dos preceitos fundamentais de não maleficência, de beneficiência, autonomia e justiça. Assim, para assistir ao paciente dentro destes princípios é necessário seguir o raciocínio clínico clássico da antibioticoterapia como apresentado aqui resumidamente. A clínica é soberana. O texto desenvolve, num raciocínio passo a passo, a rotina de um atendimento médico até chegar à escolha do anti-infeccioso para o tratamento de pacientes com doenças infecciosas sejam elas bacterianas, micobacterianas, virais, fúngicas, parasitárias. No campo da terminologia, entretanto, por falta de um jargão comum a todas essas possibilidades, é utilizado aqui o conjunto de palavras relacionadas às infecções bacterianas.
A antibioticoterapia baseia-se em três linhas de raciocínio que se entrelaçam:
Raciocínio clínico
Identificação do agente etiológico e
Determinação da suscetibilidade do agente etiológico,
dentro dos quais estão incluídos os seguintes passos:
Passos
Anamnese
Detalhada, coletar informações cronológicas dos sintomas e de qualquer evento ou fato que contribua para o diagnóstico sindrômico e para a hipótese diagnóstica, com evidência em algum dado epidemiológico que possa contribuir para a o estabelecimento da hipótese etiológica.
Exame físico
Minucioso, verificar sinais de doenças infecciosas e identificar a possível porta de entrada do agente etiológico e/ou foco infeccioso.
Discernimento quanto à natureza da síndrome, se infecciosa ou não
De acordo com o conjunto das informações colhidas até aqui e com o raciocínio clínico inicial que já começa a se formar, é muitas vezes possível discernir se a melhor possibilidade diagnóstica é infecciosa ou não. Exemplo: paciente alcoolista com febre elevada e dor abdominal em faixa há 1 dia em homem em postura de prece maometana, já com atendimento iniciado em um serviço de emergência médica, apresentando leucocitose e desvio à esquerda importantes, com amílase e lípase elevadas configura claramente o quadro de pancreatite aguda por álcool. Para este quadro, o conjunto apresentado não permite uma hipótese infeciosa. Neste caso, os sinais inflamatórios (febre elevada, dor muito importante, leucocitose e desvio à esquerda marcados) não são devidos a um agente infeccioso.
Determinação do foco infeccioso e/ou porta de entrada
Este passo é dado quando no anterior, a síndrome clínica se encaixa com etiologia infecciosa. Através de todos os dados colhidos até então, identifica-se o foco infeccioso e/ou porta de entrada do agente etiológico. Por exemplo: mulher jovem previamente hígida, com disúria e polaciúria há 1 ou 2 dias, com exame físico normal e leucocitúria configura um contexto clínico tal que o diagnóstico sindrômico é de cistite bacteriana aguda.
Diagnóstico sindrômico
Como nos seguintes exemplos, pneumonia bacteriana aguda adquirida na comunidade, pielonefrite bacteriana aguda, síndrome viral aguda de 2 dias de evolução cursando com tosse, hiperemia conjuntival e exantema morbiliforme.
Diagnóstico anatômico
Identificar detalhadamente o(s) sítio(s) anatômico(s) do(s) local(is) comprometido(s), ou seja, do processo infeccioso. Ex.: pneumonia bacteriana aguda do lobo inferior direito. Osteomielite crônica da tíbia direita.
Hipótese etiológica
Hipótese baseada no raciocínio clínico desenvolvido nos passos anteriores, na microbiota humana normal, no agente etiológico mais comum para o quadro clínico do paciente sob atendimento, como também nos dados epidemiológicos, anatômicos e sindrômico do presente caso. Como pode-se observar, até esta fase, a base para a hipótese etiológica é somente o raciocínio clínico. Não chegou ainda a etapa da utilização de resultados de exames complementares.
Coleta do espécime clínico
Assim que identificado o foco da infecção ou a porta de do agente etiológico, procura-se, com empenho, coletar espécime clínico para **estudo microbiológico**. No de cistite, coleta-se amostra de urina; no de pneumonia bacteriana aguda, escarro.
Estudo microbiológico
Gram: visualização do agente etiológico (Para infecções não bacterianas: outros testes e técnicas)
Cultura e identificação: exames laboratoriais que darão sequência para se alcançar o diagnóstico etiológico, e assim, à escolha mais acertada do tratamento definitivo, no caso de doenças bacterianas. Se a hipótese etiológica for fúngica, os exames solicitados serão os deste contexto, e assim por diante, conforme a(s) hipótese(s).
Antibiograma (teste de suscetibilidade aos antibióticos)
Indicação do antibiótico
Este passo serve como que uma pausa para considerar que há doenças infecciosas onde o uso de um anti-infeccioso é indicado (sepse bacteriana, meningite bacteriana aguda); para outras não (leptospirose no período das localizações) e poder então julgar se há indicação de antibiótico para a infecção atual do paciente em atendimento.
Diagnóstico presuntivo
Consiste do raciocínio clínico desenvolvido até aqui acrescido da visualização do agente etiológico. Para casos de infecção bacteriana, a visualização de uma bactéria ao gram, no espécime clínico coletado do paciente. Aqui o grau de certeza fica bem maior, do que no passo da hipótese etiológica, o que permite mais acerto na escolha do antibiótico. Em casos graves, essa mudança para melhor no grau de certeza é um avanço enorme.
Tratamento empírico ou inicial
Consiste da antibioticoterapia baseada na hipótese etiológica ou no diagnóstico presuntivo. Em pacientes graves, assim que coletados os espécimes clínicos, faz-se a prescrição de início imediato do antibiótico escolhido para a hipótese etiológica que estabelecida.
Diagnóstico etiológico ou definitivo
Este estágio é alcançado quando o espécime clínico coletado em passos anteriores, demonstra crescimento em cultura permitindo a identificação do agente etiológico. Procede-se a seguir o antibiograma. Por serem cultura, identificação, antibiograma, exames complementares, os resultados destes exames devem ser interpretados à luz do quadro clínico.
Tratamento etiológico ou definitivo
Tendo-se chegado ao diagnóstico etiológico e ao conhecimento da sua suscetibilidade, chega o momento da decisão da indicação do antibiótico conforme essas informações e conforme a doença a conforme o paciente. Se já iniciado um curso de antibiótico empírico, avalia-se a necessidade do ajuste ou não da escolha feita, após o resultado do antibiograma, conforme avaliação e parâmetros clínicos.
Da escolha do anti-infeccioso até a alta médica do paciente
A escolha do anti-infeccioso consiste apenas do início do acompanhamento do paciente com doença infecciosa e parasitária. Os itens subsequentes do acompanhamento sob o ponto de vista da antibioticoterapia serão abordados em outro artigo. Estes itens são:
Acompanhamento da evolução e da continuidade do tratamento do paciente
Suspensão da antibioticoterapia
Avaliação pós-antibioticoterapia
É importante ressaltar que, devido à diversidade dos pacientes e às variadas apresentações das infecções, as etapas acima devem ser adequadas às particularidades de cada caso. É recomendado, devido à urgência, iniciar de imediato o tratamento empírico a partir da hipótese diagnóstica nos casos de sepse, por exemplo. Outras vezes, é mais apropriado aguardar o diagnóstico etiológico para depois iniciar o antibiótico escolhido, como por exemplo no caso um paciente com osteomielite crônica não complicada sem outras comorbidades e com acesso fácil e disponível para coleta de pus.
Deste modo, a sequência dos passos apresentados varia de acordo com o caso específico do paciente em atendimento, cenário clínico de emergência médica, urgência ou não, dentre outros aspectos.
Há ainda uma segunda abordagem da antibioticoterapia, não desenvolvida neste texto. Me refiro ao contextos no qual há impossibilidade de se alcançar o diagnóstico etiológico ou quando a evolução clínica é desfavorável. Esse assunto será tema de outro artigo do blog.
Dicas do blog
1. O melhor caminho para prescrever antiinfecciosos apropriadamente é trabalhar para alcançar o diagnóstico preciso tendo por base noções mínimas de Microbiologia, de Farmacologia e da Clínica das Doenças Infecciosas. Desenvolver e utilizar o modelo mental de definir ao máximo de clareza os problemas do paciente para então resolvê-los é uma estratégia inteligente. 2. Pelos motivos acima, recomendo procurar com todo o esforço para, sempre que possível, definir o problema infeccioso do paciente (a doença infecciosa) como constituído de 3 partes: a síndrome infecciosa, o agente etiológico e a sua susceptibilidade aos antiinfecciosos. Exemplos: meningite por pneumococo sensível à penicilina (PSP), sepse por Staphylococcus aureus resistente à oxacilina (MRSA ou ORSA), osteomielite crônica do fêmur esquerdo por K. pneumoniae sensível apenas a meropeném e polimixina B. Esse mindset é muito útil para o médico que está frente a um paciente com doença infecciosa, especialmente se doença grave.
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